A relevância do Patrimônio Cultural e da Memória
Entrevista com a historiadora e bolsista do CNPq, Profª Márcia Chuva que fala sobre o assunto e explica a importância de preservar o patrimônio histórico-cultural do país.
As depredações do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, há um mês, destruíram parte do patrimônio artístico-cultural brasileiro que se encontrava nesses locais. Especificado no artigo 216 da Constituição Federal, esse patrimônio é formado, entre outros, por obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, além de conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Apenas a leitura do texto constitucional, contudo, não transmite a dimensão do significado, para a história cultural do país, dos edifícios públicos e das obras vandalizados. As sedes do Governo Executivo Federal, do Parlamento e do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro não são apenas construções, mas símbolos da moderna arquitetura brasileira, que já era conhecida na década de 1930 e alcançou seu apogeu na construção de Brasília. As obras de arte destruídas foram produzidas por artistas reconhecidos e são exemplares de momentos variados da história da arte brasileira. O mobiliário avariado, por sua vez, possui valor histórico e artístico. Parte dos móveis depredados são lembrança de uma era em que a urbanização crescente do país, combinada à moderna arquitetura brasileira e aos estímulos à industrialização no Brasil, contribuíram (eu acho que é contribuiu porque “a urbanização crescente do país contribuiu”) para a profissionalização do design nacional, com o surgimento de designers como Sérgio Rodrigues e Jorge Zalszupin. Móveis desenhados por esses profissionais foram depredados nas invasões ocorridas dia oito de janeiro.
Primeiro conjunto urbano do século XX reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial, em 1987, Brasília foi concebida à luz do Modernismo, movimento que buscava romper com o tradicionalismo cultural, renovando os valores estéticos do país, na tentativa de alinhá-los aos do mundo moderno de então. A integração entre urbanismo, arquitetura e artes plásticas, que, em finais da década de 1950 fez o crítico de arte Mário Pedrosa classificar a cidade de “síntese das artes”, demonstra como a combinação da arte com a técnica, por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, fizeram da cidade um marco de modernidade no mundo. A transferência da capital federal do Rio de Janeiro para a região Centro-Oeste possibilitou que a remontagem da estrutura político-administrativa do Brasil acontecesse sob os valores estéticos que dominavam a produção da elite cultural daquela época. Por isso há que se falar da relevância e da singularidade do patrimônio formado em Brasília e que é representativo de um momento relevante da história brasileira. Os órgãos públicos da cidade possuem um dos mais expressivos acervos de mobiliário moderno brasileiro, segundo os especialistas da área.
Para frisar a importância do patrimônio artístico-cultural brasileiro e ressaltar o papel da memória no resguardo desse patrimônio, entrevistamos a bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e historiadora, Márcia Regina Romeiro Chuva, professora do Programa de Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Na entrevista que se segue, ela responde a questões como a relação entre patrimônio cultural com as políticas de memória e a representatividade do que foi destruído para a história do Brasil.
CNPq – Por que é tão importante se preservar o patrimônio histórico-cultural como é o caso de edifícios, obras e mobiliário destruídos em Brasília?
Márcia Chuva – A destruição dos edifícios e bens móveis, obras de arte e mobiliário ocorrida em Brasília no último dia oito de janeiro foi um atentado contra a democracia e a nação. Além de serem bens da coletividade, por serem públicos pertencem a todos nós enquanto patrimônio cultural da nação.
Chamamos de patrimônio cultural todo bem a que são atribuídos sentidos e significados que o tornam referência para um grupo social, que com ele se identifica. Ao ser reconhecido como patrimônio, esse bem torna-se um elo entre passado e presente para aqueles que compõem esse grupo hoje. Todo patrimônio, portanto, se constitui a partir de uma forte carga simbólica, que produz um sentimento de pertencimento no tempo presente.
O patrimônio cultural brasileiro é, nesse sentido, aquilo que agrega a nação como um grupo, que permite que seus integrantes se reconheçam como parte desse amplo e diverso grupo de identidade que constitui a imaginação da nação brasileira.
O patrimônio cultural brasileiro é assim formado por bens culturais, artísticos e históricos, cujas características representam, não somente uma unidade identitária, mas justamente as múltiplas identidades que cotidianamente se formam e compõem o espectro que torna a nação brasileira única no mundo.
Outro aspecto a ser destacado é que a preservação do patrimônio cultural brasileiro deve ser garantida pelo Estado, protegendo aquilo que é bem público, cujo valor é coletivo. Nessa medida, cabe ao Estado e suas instituições proteger esse patrimônio de interesses privados antagônicos que visam a sua destruição, por motivações diversas, sejam questões econômicas, ideológicas, dentre outras. O interesse público deve prevalecer.
A cidade de Brasília é considerada Patrimônio Mundial pela Unesco desde 1985. Ela já nasceu patrimonializada, por ser a concretização da cidade moderna única no mundo e por integrar um projeto de desenvolvimento econômico e social moderno para o país. Seu projeto arquitetônico e urbanístico foi realizado com o objetivo de representar a democracia brasileira, dando origem a um sítio em que os três poderes do Estado de direito coexistem de forma equilibrada e respeitosa. Por isso mesmo ela foi brutalmente atingida física e moralmente, quando queriam atingir o novo governo eleito democraticamente.
CNPq – Qual é a relação entre patrimônio público e políticas da memória?
Márcia Chuva – A preservação do patrimônio público é a forma de representar a diversidade de memórias que compõem o todo nacional. O respeito à diferença pode ser garantido por meio de estratégias de inclusão de patrimônios representativos de grupos sociais historicamente excluídos, silenciados e invisibilizados, tarefa sempre inconclusa, que deve ser permanentemente buscada através da participação ampla nos processos de construção do patrimônio cultural brasileiro.
Desde a Constituição Brasileira de 1934, o amparo à cultura é tratado como dever do Estado; o direito de propriedade está subordinado ao interesse social ou coletivo, cabendo à União, aos Estados e aos Municípios proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país. As constituições brasileiras subsequentes reproduziram essas ideias com pequenas variações. Na Constituição Cidadã de 1988, os extensos artigos 215 e 216 e no art. 68 do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais (ADTC) evidenciam a amplitude e a complexidade alcançadas pelo campo do patrimônio.
Considerando que o patrimônio cultural brasileiro se constitui por meio dos sentidos e significados atribuídos a bens culturais que representam as identidades múltipla s e diversas da sociedade brasileira, ao falarmos em direito à memória estamos falando em garantir o não esquecimento dos diversos grupos que se encontram na sociedade, por meio da preservação do seu patrimônio seja ele de natureza material ou imaterial. Os bens guardados nos espaços públicos dos três poderes – o Palácio da Alvorada, a sede do Congresso Brasileiro e a sede do Supremo Tribunal Federal – covardemente destruídos, danificados, vilipendiados – sofreram um atentado contra aquilo que pertence não a um governo, mas ao povo brasileiro, e que às instituições do Estado cabe a proteção.
Políticas de memória lutam contra o esquecimento que promove a exclusão ou o aniquilamento da diferença, e são necessárias para garantir a presença, a vida e o pertencimento de todos à nação. Construir memórias por meio de monumentos ou da preservação de bens culturais é uma forma de superar dores que também forjam esse liame nacional.
CNPq – As obras, partes do mobiliário e os edifícios destruídos representam vários momentos da história do Brasil. A senhora poderia comentar essa relação?
Márcia Chuva – O modernismo, fortemente presente na cidade de Brasília, nos edifícios atingidos e em parte dos bens móveis destruídos, é reconhecido nacional e internacionalmente pela sua qualidade estética e também por marcar um tempo histórico brasileiro. Mas não foram somente os bens modernos destruídos, foram também bens culturais de tempos históricos anteriores e remotos. A sociedade brasileira foi atingida em suas raízes históricas, pois os bens que compõem esse patrimônio público representam a história do Brasil e devem ser preservados como documentos dessa trajetória, marcada por lutas e conquistas de grupos sociais diversos e que se somam numa composição múltipla, representando valores e visões de mundo variadas.
A história única que se impõe com a destruição é silenciadora dessa diversidade e das lutas sociais vivenciadas pela sociedade. Para superarmos esse risco é preciso proteger bens que representem as referências de diversos momentos e eventos históricos vivenciados. O custo social, político e cultural da história única é o apagamento da diversidade brasileira, que somente a democracia pode garantir. A preservação do patrimônio público é uma das estratégias mais importantes para a formação de uma sociedade capaz de lidar com diferentes modos de compreensão da sua história e, consequentemente, dos valores que deverão projetar o seu futuro.
Quanto mais ampla, diversificada e controversa a história que tais bens representam, mais se torna possível a compreensão de que a nação é composta por grupos que merecem ter suas memórias e experiências compartilhadas e respeitadas por todos. Somente desse modo seremos capazes de construir um país mais inclusivo, digno e seguro para todos.
CNPq – A senhora pode fazer um comentário final sobre as políticas de patrimônio e as políticas de memória?
Márcia Chuva – A destruição dos valores culturais de uma nação é um projeto de aniquilamento do outro, de intolerância com a diferença. O futuro dessa perspectiva já vimos acontecer em outros momentos da história global, a exemplo do nazifascismo. O dever de memória é obrigação do Estado, para impedir o esquecimento da opressão e do abuso de poder que se revela com a destruição da cultura. Penso, portanto, que é preciso preservar os valores democráticos na sociedade brasileira como seu patrimônio, conquistado com muito sofrimento. Nesse sentido, entendo que é preciso hoje não esquecer a violência perpetrada contra o patrimônio, expressão maior da intolerância cultural. Para isso, deve-se cumprir a lei, punir os culpados e garantir a soberania da democracia no país.
Preservar o patrimônio trata-se, portanto, não somente da celebração de personagens de uma história política dominante, mas de ampliar a escuta de setores sociais historicamente silenciados. Desse modo, é possível também associar esses direitos à produção de políticas de reparação, com o reconhecimento de bens e práticas culturais dos povos originários, de comunidades tradicionais e quilombolas como parte integrante do patrimônio cultural brasileiro, que deve somar-se àquilo que foi até hoje conquistado, preservado e guardado como patrimônio cultural brasileiro.
As políticas de patrimônio e as políticas de memória devem se coadunar com o alcance de outros direitos fundamentais, como o direito à justiça e o direito à verdade, que precisam ser garantidos sem anistia, nesse momento grave vivenciado no Brasil.
Fonte: CNPq
Foto: Profª Márcia Chuva – Fiocruz/Divulgação