Ideia de uma cultura superior tem que ser superada, afirma relatora da lei antirracista
Aos 80 anos, uma das lideranças da luta antirracista na Educação, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva afirma que o mais o importante no ensino de relações étnicoraciais não é tanto o conteúdo, mas a capacidade de dialogar com os distintos grupos sociais. Na entrevista ao Jornal da Ciência, ela apresenta sua visão sobre a difícil marcha da luta antirracista no País.
Vinte anos se passaram da implementação da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura da África e Afro-brasileira no âmbito dos sistemas de ensino da educação nacional. Sancionada pelo mesmo presidente da República que agora está tomando posse em Brasília, a Lei se transformou em uma política de Estado, o que era a intenção da relatora do parecer de sua regulamentação (CNE/CP 003/2004), Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Nascida em Porto Alegre, no bairro Colônia Africana, em 1942, ela é professora emérita da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Licenciada em Letras e Francês (1964), possui mestrado em Educação (1979) e é doutora em Ciências Humanas – Educação (1987) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi a primeira mulher negra a compor o Conselho Nacional de Educação e nesta entrevista ao Jornal da Ciência, ela apresenta sua visão sobre a difícil marcha da luta antirracista no País.
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Jornal da Ciência – A lei 10.639/03 completa 20 anos em janeiro de 2023. Em um contexto mais amplo, o que se pode celebrar?
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Eu penso que o que se pode celebrar é que as pessoas começaram a conhecer sobre as relações sociais no Brasil, particularmente as relações étnico-raciais. Ainda que seja um número restrito de pessoas, considerando a totalidade da população. É preciso conhecer para, justamente, aperfeiçoar naquilo que precisa ser aperfeiçoado, ou naquilo que precisa ser refeito – porque é preciso conhecer a história para saber que rumo queremos dar à sociedade em que vivemos. Para ter um rumo, eu tenho que ter um projeto de sociedade. A grande pergunta é: Qual é nosso projeto de sociedade?
JC – E o que falta para um projeto de sociedade?
PBGS – Eu diria que muitos grupos, desde o século XVI, ao reagirem à invasão, começaram a construir esse projeto sociedade. Mas o que tem prevalecido é o projeto daqueles grupos que têm tido o poder de governar, que têm mantido o poder de decidir os destinos da sociedade e que o fazem com muita frequência sem ouvir os demais grupos, porque os consideram subalternos ou porque os consideram menos importantes.
JC – Em suas conferências, a senhora tem localizado a origem mais recente da Lei 10.639/03 nos movimentos negros dos anos 80 e 90. Que caminhos trilhados por esses movimentos levaram até a criação e aprovação dessa legislação?
PBGS – É uma construção de um século. Eu diria que os movimentos sociais, notadamente o movimento negro antes mesmo de ser assim designado. Dos grupos negros que, nos seus encontros – fosse para conhecer a história dos grupos sociais, fosse para alfabetizar os não alfabetizados –, a gente sabe que, no início do século passado, diversos grupos de pessoas negras se reuniam para alfabetizar adultos que ainda não tinham tido a chance de ser alfabetizados. Os quilombos já construíram esse projeto. Claro que quando digo isso é de um modo simbólico.
JC – É uma luta antiga…
PBGS – É uma luta antiga, que em diferentes momentos insistiu no seguinte: todas as pessoas são humanas e não existe um modo único de ser humano. Mas, embora não haja um modo único, o ser humano tem a habilidade, a capacidade de se comunicar, de aprender uns com os outros. E comunicação implica em aprender e ensinar, não necessariamente no sentido didático, escolar.
O que eu estou querendo dizer é que a convivência nos leva a aprender a nos comunicar, e a comunicação exige que cada um se apresente, se projete a partir das compreensões da vida, das compreensões do projeto de sociedade que pretende construir, que vem da sua família, do grupo social a que pertence, dos diferentes grupos sociais a que faz parte. Notadamente, a partir do momento em que ingressam nas instituições escolares e assim vai pela vida inteira.
JC – A senhora costuma dizer nas suas conferências, especificamente sobre a lei 10.639/03, que não se trata apenas de ensinar novos conteúdos, mas que as relações das pessoas negras e não- -negras sejam humanizadas. A senhora acredita hoje, 20 anos após a instituição dessa lei, que isso está acontecendo?
PBGS – Eu diria que sim e que não. Volto a insistir: depende do projeto de sociedade dos adultos com quem os mais jovens e as crianças convivem e que os adultos convivem entre si. Porque algumas pessoas pensam que o projeto do seu grupo social, do seu grupo étnico-racial, é o mais importante ou que merece ser valorizado. E isso então dificulta justamente um diálogo entre os diferentes modos de pensar a vida, de se posicionar na sociedade. Acho que temos ainda muito o que construir, muito que aprender. E a gente aprende isso não só nos bancos escolares, mas no convívio diário. A gente sabe que muitas vezes, ao cruzar uma pessoa na rua, no supermercado, nas igrejas, nas escolas, a forma como as pessoas te olham revela que elas estão te incluindo ou excluindo. Ou alguns nem chegam a tanto, simplesmente ignoram a presença.
JC – Focalizando um pouco mais na questão do conteúdo educacional que a lei 10.639/03 proporciona, a Sra. costuma dizer que a escola está na raiz do nosso sistema de ensino que ainda se mantém orientado pelo princípio da assimilação e da aculturação. Algo mudou nesse sentido nas últimas duas décadas?
PBGS – De novo: sim e não. Porque vai depender do plano político pedagógico da escola, se ele prevê a superação dessas relações que desprezam alguns e valorizam outros, dos planos pedagógicos das diferentes disciplinas dos distintos professores. Mais do que os planos, vai depender da forma como as pessoas se dispõem a se relacionar com as outras. Quer dizer, nós temos de superar a ideia de que haveria uma cultura superior, que muitos julgam ainda hoje que as culturas oriundas da Europa seriam superiores. E quando se diz cultura, são diferentes maneiras de enxergar as pessoas, de enxergar o ser humano e diferentes maneiras de se relacionar. Quando eu insisto nas distintas maneiras de se relacionar é porque temos de combater o sentimento e a ideia de que haveria alguns superiores.
JC – A Sra. acha que hoje existe mais essa consciência da diferença entre as pessoas? De aceitação e de acolhimento?
PBGS – É possível que sim. Eu diria que existe mais, só não sei se existe muito mais. Na verdade, o reconhecimento das pessoas distintas no modo de ser, de viver, de pensar e de organizar a vida sempre existiu, mas nem sempre foi preponderante. A nossa sociedade foi se organizando conforme eu já disse, a partir do século XVI, com a ideia de que o jeito de ser europeu, o jeito de viver, de organizar a vida, a vida pessoal, a vida em sociedade, seria superior a outros jeitos e, por isso, precisaria ser assimilado por aqueles que dele não participassem. Não se trata de assimilar um jeito de ser e viver, mas se trata de colocar em diálogo os diferentes jeitos de ser e viver, a gente ir criando um jeito que vai se tornar comum. Comum no sentido de que respeita e aceita as diferenças, as distinções.
JC – Do ponto de vista pedagógico a Sra. costuma dizer que o ensino de história africana e afro-brasileira tem que ser feito a partir das africanidades. Por isso é preciso buscar os africanos, tantos os da diáspora, quanto do continente para dialogar. Tem sido assim? Quais são os obstáculos na busca dessas africanidades?
PBGS – Acho que essa pergunta seria importante de ser feita aos professores e às professoras que estão na lida diária. Mas onde buscar? Hoje, com os meios de comunicação que nós temos, é bem mais fácil do que já foi anos atrás de termos contato com outras culturas, com outros países, outras comunidades. E quando eu digo outros, estou querendo dizer com distintas visões de mundo, distintas maneiras de compreender o que é a convivência humana, distintas maneiras de pensar e construir a sociedade que nós queremos e o mundo que nós queremos. Veja bem, estou dizendo ‘nós queremos’. Esse ‘nós’ não inclui somente os nossos grupos mais próximos, sejam os familiares, o grupo étnico-racial, o grupo de gênero, homens, mulheres, crianças, adolescentes, jovens, pessoas idosas. Depende também da disponibilidade de materiais que se tem hoje, mas não bastam materiais e as informações. É importante a disponibilidade das pessoas.
JC – E como tornar isso possível?
PBGS – A disposição que eu tenho de compreender os outros diferentes. De compreender modos de pensar, pontos de vista que não coincidam com os meus, mas que poderão ir buscar compreendê-los. É isso que a educação das relações étnico-raciais busca: aprender a ter curiosidade para compreender, para apreender diferentes maneiras de pensar, de projetar a sociedade que se quer. E mais do que isso, de com elas dialogar. O importante na educação das relações étnico-raciais é a construção do nosso projeto de sociedade. Isso se faz, claro, no convívio das famílias, das comunidades, mas também e notadamente no ambiente das escolas. Algumas perguntas importantes na educação das relações étnico-raciais são: Que projetos de sociedade cada um dos alunos traz? O que ele aprendeu na sua família e na sua comunidade? Para que ele se educa?
Fonte: Janes Rocha – Jornal da Ciência