O Futebol na Academia: esporte contemplado à luz de diversas áreas do conhecimento
Pesquisadores falam sobre a história do futebol e várias questões que emergem dessa paixão nacional: ídolos, heróis, racismo, homofobia, machismo e política.
Considerado por muitos como paixão nacional, o futebol volta a ocupar o centro das atenções, com a realização da Copa do Mundo no Qatar, emirado do Oriente Médio localizado na costa nordeste da Península Arábica. Enquanto os meios de comunicação noticiam a escalação da seleção brasileira; os métodos usados pelo técnico Tite e outras informações que podem ser consideradas valiosas por seus espectadores, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento acompanham essa movimentação não só como torcedores, mas também como estudiosos desse fenômeno em que o futebol se transformou, buscando compreender a paixão pela modalidade e a seleção brasileira, o surgimento dos seus ídolos e as questões polêmicas que rondam a temática.
Para eles, não se trata de debater as partidas protagonizadas por dois grupos de jogadores, mas de discutir um espectro de questões que emergem do contexto em que o futebol se insere e que ultrapassam as dimensões do campo e até do estádio em que o jogo se desenrola. “Quando a gente pensa em futebol, a gente pensa de fato na nossa identidade nacional, no que é ser brasileiro e em como nós nos identificamos como brasileiros. E muitas vezes se constroem ideias a partir dessa identidade e do que seria essa brasilidade a partir do futebol”, diz a professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lívia Gonçalves Magalhães, que organizou, em parceria com Rosana da Câmara Teixeira, docente do Centro de Estudos Sociais Aplicados da UFF e pesquisadora do Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural da mesma instituição, o livro Futebol na sala de aula: jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências Sociais e de História, lançado julho deste ano pela Eduff. A obra organizada pelas pesquisadoras ex-bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), trata de uma gama de fenômenos e processos sociais aos quais o futebol está associado, como literatura, gênero, profissionalização, legados das copas e repercussões sobre a cidadania, política internacional e a relação do futebol com a política em vários momentos históricos.
O racismo, tema relevante e frequente no contexto do futebol, que também é discutido no livro organizado pelas professoras Lívia Magalhães e Rosana Teixeira, merece uma menção à parte, em especial por a Copa do Mundo ter iniciado justo em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Como em outros pontos da nossa cultura popular, o futebol é um reflexo da sociedade e é pontuado por questões raciais, assunto que precisa ser discutido, também como forma de alertar a sociedade para a sua importância e como meio de educá-la. “O Brasil é um país que teve mais de trezentos anos de escravidão. A escravidão foi uma instituição e ela acabou há pouquíssimo tempo, se a gente pensar em termos históricos. E foi finalizada de uma forma que não houve uma inclusão, não houve um projeto de integração dos ex-escravizados ao novo projeto de país e de nacionalidade que começava a ser construído com a República”, afirma a professora Lívia Magalhães, lembrando o curto período entre a abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889. Além de apresentar as visões de pesquisadores acerca do racismo no futebol, dessa forma, esta matéria trata das diversas óticas sobre como o futebol é estudado na Academia. Partindo da história sobre o estabelecimento do futebol no Brasil e da projeção dada ao esporte pelos meios de comunicação, a matéria apresentação pontos de vista de pesquisadores sobre a construção de ídolos no futebol, o papel das torcidas, as discussões raciais e de gênero, a relação do futebol com a política e sobre como o esporte se afigura uma arena para as questões de relações internacionais.
COMO O FUTEBOL SE TORNOU PAIXÃO NACIONAL E A HISTÓRIA DA TRANSMISSÃO DAS PARTIDAS
Criado na Inglaterra, na metade do século XIX, o futebol chegou ao Brasil por volta de 1894, trazido pelo anglo-brasileiro Charles Miller. Aqui, à semelhança do país de origem, o esporte começou a ser praticado pela elite, enquanto não caía na graça popular, tornando-se parte característica da cultura brasileira. O motivo para o futebol ser jogado apenas por uma parcela privilegiada da população era simples: somente os que tinham condições de praticar o esporte eram quem podia se deslocar entre uma região e outra para disputar as partidas. Mas, enquanto na Inglaterra o futebol tornou-se um esporte de massa, em face da industrialização crescente, que favoreceu o acesso ao esporte de membros de classes sociais menos favorecidas, como os operários das fábricas inglesas, no Brasil o futebol permaneceu elitizado por muitos anos.
De acordo com o livro lançado pela Editora Contexto, O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país, do historiador Marcos Guterman, no Brasil a elitização do futebol permeou, inclusive, a estrutura do esporte. Praticado por brasileiros e estrangeiros de várias partes do mundo, que moravam em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, uma elite que impunha severas restrições à participação popular, o futebol não era considerado profissional, nem tinha rivalidades acirradas como as de hoje em dia. Era comum a aristocracia brasileira estar presente aos jogos. Os campos de futebol de então eram locais onde damas e cavalheiros elegantes faziam banquetes regados a champanhe após cada partida, segundo Guterman.
A popularização do esporte no Brasil apenas aconteceu no início do século XX, com a criação de regras mais claras para o futebol e de clubes com estatuto. Alguns jogadores também começaram a receber prêmios para disputar partidas. No mesmo período, a massa pobre da sociedade adotou o esporte importado da Inglaterra, que ganhava traços de competição. O alto custo da bola de futebol original, importada, fez com que, no Brasil, membros das classes sociais mais baixas utilizassem bolas feitas com bexigas de boi. Em São Paulo, jogava-se futebol na região da Várzea do Carmo, o que deu origem ao termo “futebol de várzea”, utilizado para designar qualquer prática amadora de futebol. O aparecimento das primeiras torcidas e sua frequência aos estádios trouxe à cena vaias a jogadores e a árbitros.
Em 1910 aconteceu a fundação do Sport Club Corintian Paulista, um dos mais importantes clubes da época, formado apenas por populares, excluindo a elite. O The Bangu Athletic Club, fundado em 1904, no Rio de Janeiro, também já possuía operários entre seus atletas, com a diferença de que o time era financiado pelos industriais da região. O começo do novo século também testemunhou o surgimento da equipe de futebol do Clube de Regatas Flamengo, criada no Rio de Janeiro em 1911. Em 1914, por sua vez, foi fundado em São Paulo o clube Palestra Itália, renomeado como Sociedade Esportiva Palmeiras, em 1942. Além disso, nesses anos se organizaram os primeiros campeonatos regulares de futebol, como o Campeonato Paulista, em 1902, e a Liga Metropolitana de Football, no Rio de Janeiro, em 1905. No período, o Vasco da Gama, então apenas um clube de remo, fundiu-se ao clube Lusitânia, formando uma equipe de futebol com o primeiro presidente negro da história do futebol brasileiro e com vários jogadores negros na equipe. O jogador Arthur Friedenreich, filho de mãe negra e de pai branco, nascido na Alemanha, era considerado um dos melhores de sua época e referência no futebol brasileiro.
Já enraizado na cultura brasileira, o esporte ganhou destaque ao ser transmitido pelos meios de comunicação. Primeiro pelo rádio e, mais tarde, pela televisão. De acordo com artigo da doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Marizandra Rutilli, publicado no blog Comunicação, Esporte e Cultura, do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME), da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), registros sobre as primeiras transmissões esportivas apontam que as partidas de futebol foram transmitidas pelo rádio nos anos 1920. À época, porém, a veiculação dos jogos era tarefa quase impossível, dada a tecnologia incipiente e a falta de estrutura dos estádios ou de pessoal. Havia, ainda, a resistência de clubes, que chegaram a proibir as primeiras emissoras de transmitirem as partidas sob o argumento de que o rádio geraria concorrência ao espetáculo previsto para acontecer em campo. Temia-se que o público deixaria de frequentar os estádios para ouvir os jogos em casa.
Em 19 de julho de 1931, o jornalista Nicolau Tuma fez história ao narrar, de forma oficial e ininterrupta, jogo entre as seleções de São Paulo e do Paraná. Até então, as transmissões dos jogos se limitavam a boletins esporádicos, que informavam os principais lances. No Vale do Anhangabaú, em São Paulo, a transmissão foi reproduzida por alto-falantes dispostos por uma confeitaria.
O fato mais importante na história das transmissões do futebol pelo rádio, foi, talvez, ainda nos anos 1930, a formação da maior cadeia de estações de rádio até então conhecida, estabelecida para transmitir em rede a partida da seleção brasileira contra a seleção polonesa, válida para a Copa do Mundo, direto da França. A Rede Verde-Amarela, que contava com emissoras espalhadas por diversos estados do país e recepção da Rádio Club do Brasil, do Rio de Janeiro, durou apenas o tempo necessário para a transmissão dos jogos da Copa.
A chegada da televisão ao Brasil, em 1950, contribuiu ainda mais para a popularização do futebol no país devido à transmissão das partidas, ainda que de forma precária. Embora a primeira emissora do país, a TV Tupi, tenha entrado no ar em 18 de setembro de 1950, o primeiro jogo exibido ao vivo no Brasil foi veiculado apenas cinco anos depois. Até 1958, os brasileiros acompanharam as Copas do Mundo de futebol pelo rádio e apenas viam imagens das partidas por meio de filmes de curta duração, exibidos na televisão e nos cinemas, nos chamados jornais da tela. A própria Globo somente transmitiu sua primeira partida em novembro de 1965, ainda que apenas duas horas após a realização do amistoso Brasil e União Soviética, realizado no Maracanã, e somente com arranjo providenciado pelo jornalista Teixeira Heizer, encarregado de comandar a transmissão. O jogo foi gravado em partes, em filmes, e a emissora montou o material. Heizer fez a narração por cima das imagens já editadas.
Assim, o futebol foi se popularizando na rádio e na televisão brasileiras, até chegar ao atual formato, em que há dias e horários fixos nas grades das redes, que possuem direitos dos campeonatos.
O começo da televisão por assinatura, na década de 1990, aumentou ainda mais a oferta de jogos. Hoje é possível assistir a transmissão de partidas do mundo inteiro online e não só ao vivo, como também assistir suas reprises, em canais de streaming ou pela internet. Algumas emissoras focadas em esporte também disponibilizam a transmissão de jogos por meio de redes sociais.
Ao avaliar a interconexão da história do futebol com os meios de comunicação no Brasil, o bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e professor titular da Faculdade de Comunicação Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ronaldo Helal, afirma que o rádio foi um grande difusor do futebol e seu papel continua forte, mesmo com o advento da televisão e com a internet. “O rádio é um meio que não termina. A gente acha que a TV matou o rádio, não”, diz ele, lembrando que, embora as partidas já fossem transmitidas pela televisão, era comum ver torcedores acompanhando os jogos no estádio com o radinho de pilha próximo aos ouvidos. “É como se o rádio fosse a extensão daquilo que você estava vendo em campo”, salienta o professor, que frisa a adaptação do rádio à internet. Hoje há várias estações que tem canais na internet.
De acordo com o professor Helal, a internet também não pôs fim ao status do rádio. O que aconteceu, explica ele, foi um maior acesso dos torcedores às partidas. “A internet contribuiu para o sujeito ter um acompanhamento em tempo real mais próximo, acompanhar minuto a minuto, ampliou a capacidade de acompanhar seus times”, diz ele, ressaltando também as mudanças ocorridas entre os torcedores por causa da internet. “Hoje existe uma maior europeização do nosso torcedor. A internet fez uma geração de torcedores que hoje em dia acompanha muito o futebol europeu. Você vai encontrar um número razoável de torcedores que acompanha os campeonatos europeus e acompanha os jogadores que saíram do Brasil”, completa.
O avanço tecnológico e de transmissões, contudo, ainda não suprimiu uma das características mais marcantes do formato de transmissão de futebol de televisão, com grande semelhança ao formato do rádio: a presença de um locutor, de comentaristas e de repórteres que, juntos, são responsáveis pela transmissão esportiva. O narrador explica o que ocorre e como acontece, pede a opinião ou a análise do comentarista, e os repórteres de campo apresentam detalhes pontuais ou registros técnicos.
ÍDOLOS HERÓIS E TORCIDAS – O PAPEL DE CADA UM
Quando se fala em futebol, em geral, é quase impossível não associar o calor das partidas à eleição de ídolos e ao papel das torcidas. Desde Arthur Friedenreich, no início do século XX, vários foram os ídolos eleitos e outros tantos os despojados desse título no futebol brasileiro. Pelé, talvez o nome mais emblemático, virou não só ídolo nacional, mas referência mundial do país quando o assunto é futebol. As torcidas exercem papel fundamental nessa escolha desde que o esporte se popularizou no país e podem elevar os jogadores às alturas ou lançá-los aos lugares mais obscuros de maneira fugaz, assim que se sentirem decepcionadas com o rendimento dos atletas em campo. Tanto é assim que o papel dos torcedores e sua influência no futebol têm sido objeto de pesquisa de profissionais de diferentes áreas, como a Psicologia e a Educação Física. Os estudos investigam como a multidão pode ser uma variável que afeta os jogadores e de que forma times de futebol e seus treinadores obtêm os respectivos resultados, sob a influência da torcida presente em estádios ou arquibancadas.
Em geral, esses estudos demonstram que a presença da torcida é sentida pela maioria dos atletas, de formas diferentes. Alguns deles confessam que a torcida, seja contra ou a favor, interferiu de forma positiva em suas performances. Outros, por seu turno, afirmam se achar pressionados ou tensos com as manifestações dos torcedores. Há atletas que dizem ter um aumento da motivação com o estímulo da torcida. A chave para essa situação, segundo os especialistas, é o atleta crer que pode atender às exigências do ambiente, sabendo usar o que os fãs fornecem, desde que essa torcida aja de forma satisfatória. A presença do público pode ser um fator importante para o desempenho dos atletas e a busca da vitória.
“Falar de torcida é contemplar uma experiência cultural muito importante na sociedade brasileira, um fenômeno histórico social multifacetado e complexo”, afirma a doutora em Antropologia Cultural e professora da UFF, Rosana Teixeira, que estuda as torcidas organizadas desde os anos 1990. Ela diz que, sob a denominação “torcida”, podem ser observados diferentes modos de adesão, de organização e de engajamento, como charangas e torcidas organizadas, entre outros. As organizadas, segundo a professora, se constituíram entre finais da década de 1960 e início dos anos 1970 já manifestando um comportamento crítico e contestador, e foram se transformando ao longo do tempo, tendo em vista conjunturas sociais e políticas. “Nos últimos anos, elas têm sido um observatório privilegiado para a compreensão de uma miríade de questões e problemas sociais, como preconceito racial e as desigualdades de gênero no futebol”, ressalta a professora.
Segundo a professora Rosana Teixeira, a paixão pelo futebol possibilita experiências associativas, como foi a criação da Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil (ANATORG), criada em 2014. “Vemos aí a definição de projetos e a construção de agendas para defender os direitos de torcer e participar do futebol, do espetáculo futebolístico cada vez mais elitizado”, observa a professora, salientando que essa associação de torcidas também contribui para propostas de redução de confrontos violentos e para o estabelecimento de políticas públicas de prevenção desses conflitos. “Todos esses exemplos mostram que o futebol espelha e coloca em destaque uma série de temas e dilemas sociais ou, como afirmava a antropóloga Simone Guedes, o futebol produz uma identificação coletiva permanente através de derrotas e vitórias”, completa a professora.
Embora seja a torcida a responsável pela eleição dos ídolos, a mídia é a responsável pela edição da história do herói. Ele é quem vai dar o material para os meios de comunicação, segundo o professor de Comunicação Social da UERJ, Ronaldo Helal. Ele diz que, em última instância, o que conta para que o atleta seja alçado à posição de herói é o que ele faz em campo. “Desde que extracampo não sejam coisas muito sérias”, frisa ele. O professor cita o exemplo do ex-jogador Zico. “O Zico não tem como ser esquecido. Está marcado na história, [ele] nunca vai deixar de ser ídolo do Flamengo”, diz o professor, que menciona também o caso do ex-jogador e hoje senador reeleito pelo estado do Rio de Janeiro, Romário. Apesar de suas faltas aos treinos, quando ele fazia gols, torcida e mídia ignoravam essa atitude. O contrário aconteceu com o ex-jogador Adriano, também do Flamengo, que em 2010 parou de fazer gols. Ao não demonstrar mais o rendimento esperado, torcida e meios de comunicação começaram a prestar atenção ao que ele fazia fora de campo. Essas atividades já existiam e eram conhecidas, mas foram renegadas a segundo plano quando o jogador estava em seu auge porque ele oferecia à torcida o que dele era esperado.
“Torcedores elegem os ídolos. A Mídia vai acompanhando o sentimento da torcida. É uma via de mão-dupla. O Neymar tem sido criticado no Brasil, mas se fizer um gol na Copa todo mundo esquece”, diz o professor Helal. “O esporte e o futebol são terrenos férteis para a produção de ídolos que são heróis”, analisa o professor, observando que, para ser elevado à categoria de herói, o jogador deve provar seu caráter de conquista. ”Herói é aquele que tem um chamado, uma missão, que supera obstáculos intransponíveis e que retorna para casa, dividindo a conquista com seus semelhantes. Aquele atleta que faz um gol de campeonato está dividindo a conquista com a torcida. Tem de ter alguma coisa no objeto mitificado capaz de exercer fascínio”, afirma o professor. Ele dá o exemplo do jogador Gabigol, atleta do Flamengo e elevado à condição de ídolo no clube devido aos gols que já fez vestindo a camisa do Flamengo.
O FUTEBOL COMO REFLEXO DA SOCIEDADE – RACISMO, HOMOFOBIA, DISCUSSÕES SOBRE GÊNERO
O racismo constitui uma discussão relevante, quando se trata de futebol. De acordo com a professora Lívia Magalhães, as questões sociais sempre estarão presentes no esporte. “Criou-se um mito da democracia racial brasileira, que é um mito da própria sociedade, a ideia de que nós somos uma democracia racial. E que o futebol seria um espelho dessa democracia, de que no futebol não existiria essa ideia de racismo, que é um espaço de igualdade entre negros e brancos, o que não é verdade”, afirma a professora. Segundo ela, o esporte expõe a questão do nosso racismo estrutural e do individual de forma clara e é preciso que pensemos a questão não somente como assunto exclusivo do futebol, mas também como uma questão social. “O racismo vai estar presente em todos os aspectos da sociedade brasileira”, completa a professora.
Com ela concorda a pesquisadora Fernanda Haag, doutoranda em História Social, da Universidade de São Paulo (USP), que estuda a profissionalização do futebol de mulheres no Brasil. Segundo ela, o esporte estabelece relações sociais, políticas, culturais e econômicas e dessas conexões aparecem as questões de raça, de classe e de gênero. “A primeira coisa que temos de ter em mente é que o futebol não paira em um vácuo. Então o futebol é um ambiente que vai reproduzir machismo se essa sociedade for machista, vai reproduzir racismo se essa sociedade for racista e por aí vai”, afirma ela. “Podemos perceber isso de maneira estrutural. Por exemplo, quantos jogadores negros nós temos em comparação com a quantidade de técnicos e dirigentes negros, que são cargos de gestão ou de maior poder decisório?”, pergunta ela. A pesquisadora atenta para o modo como as coberturas de jogos tratam questões sociais, como o racismo. “Quantas vezes não vemos comentaristas reproduzindo estereótipos sobre jogadores negros ou sobre seleções africanas, por exemplo?”, pergunta Fernanda Haag. “Eles [os comentários] parecem que são sobre o jogo, mas na verdade estão reproduzindo estereótipos de raça”, conclui a pesquisadora.
Contudo, se manifestações racistas ainda são percebidas no futebol, os movimentos coletivos que denunciam a discriminação racial vêm ganhando cada vez mais espaço, como é o caso do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. O Observatório tem o objetivo de monitorar e de divulgar os casos de racismo no esporte, bem como ações informativas e educativas que contribuam para a erradicação da intolerância. Segundo a página oficial da entidade, “o racismo no futebol precisa ser tratado com extrema seriedade e o Observatório almeja tornar-se uma organização que promova o diálogo entre clubes, entidades, torcidas e movimentos sociais”. Ao lembrar que o futebol transforma vidas, contribui para a aprendizagem, gera empregos e é um fator de inclusão social, o texto que revela os objetivos do Observatório lembra que o esporte pode ser um agente mobilizador em prol de diferentes causas da sociedade, entre elas a discriminação racial.
Na própria página do Observatório, é possível encontrar relatórios anuais de discriminação, realizados a partir de 2014 e onde é possível se verificar estatísticas de ocorrências no Brasil, além de casos levantados no exterior e na Copa. Apenas no relatório de 2014, ano do primeiro levantamento, por exemplo, foram registradas de forma oficial vinte ocorrências de racismo, em campeonatos regionais e no campeonato brasileiro.
No caso das mulheres, a discriminação por gênero no futebol não se refere apenas a jogadoras, mas também às torcedoras, e constituiu um dos obstáculos que levou ao atraso da profissionalização do futebol feminino. “Existem inúmeros estereótipos sobre as jogadoras. Elas têm de se enquadrar, ou é musa, ou é a ideia de mulher-macho”, diz a pesquisadora Fernanda Haag. Ela ressalta, ainda, a existência de visões pejorativas sobre a modalidade, como a afirmação de que futebol feminino não dá audiência. “O que tem se mostrado mentira, cada vez mais. Obviamente isso é fruto de um processo histórico”, conclui a pesquisadora. De fato, no caso do futebol feminino, a diferença na profissionalização de jogadoras em relação à dos jogadores incluiu a proibição de praticar o esporte, o que afetou o desenvolvimento, a visibilidade e a estruturação da própria modalidade.
O futebol masculino conta com mais de noventa anos de profissionalização. Começou na década de 1930, durante o primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas, que tinha uma forte relação com trabalho. Na mesma era Vargas em que os homens se profissionalizavam no futebol, as mulheres eram proibidas de praticar determinados esportes em 1941, futebol incluído. Esse impedimento foi reiterado em 1965 e só revogado em 1979. Contudo, a regulamentação do futebol para as mulheres apenas aconteceu em 1983. “E ainda assim no artigo 3º dessa deliberação afirmava-se que era vedada no futebol feminino a prática do profissionalismo”, ressalta Fernanda Haag.
Para a pesquisadora Haag, os anos 1980 podem ser considerados como de ascensão e de consolidação do futebol de mulheres. “A gente passa a ter torneios regionais, alguns nacionais e, nos anos 1990, a gente tem a abertura de novas possibilidades para o futebol de mulheres: torneios internacionais, Copas do Mundo para as mulheres, participação do futebol feminino nas Olimpíadas, uma maior divulgação. As jogadoras também passam a tirar rendimentos do esporte de maneira mais contínua”, afirma ela. A pesquisadora observa que o contexto da década de 1990, com a chegada do Neoliberalismo ao Brasil, afetou a profissionalização das jogadoras porque o pensamento neoliberal, com seu consequente esgarçamento de relações de trabalho em geral, ia na contramão de discussões sobre direitos trabalhistas e de condições adequadas de trabalho, requisitos básicos para a profissionalização das jogadoras. “Há uma intersecção clara entre questões de gênero e de classe, porque a gente está falando de trabalho”, salienta Fernanda Haag. Apenas recentemente a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) igualou as diárias das premiações das seleções feminina e masculina. Contudo, algumas jogadoras da série A1 do Campeonato Brasileiro ainda não possuem carteira assinada e continua a existir muita precariedade, além de denúncias de descaso e demissões para aquelas que ousam comentar a situação de forma aberta.
No caso das torcedoras, também há assédio e outras tentativas de deslegitimação do torcer dessas mulheres, um problema que, de forma um pouco semelhante, atinge a torcida LGBTQIA+. Na tentativa de combater a discriminação, o Movimento Mulheres de Arquibancada reuniu, em 2017, cerca de 350 mulheres representantes de torcidas e de coletivos, que buscavam amplificar suas vozes para fortalecer e ampliar espaços nas arquibancadas, denunciando o machismo, a homofobia e o sexismo nesses espaços. “O sexismo, assim como a visibilidade de outras masculinidades, também estão em curso e ganham cada vez mais repercussão nas arenas públicas e futebolísticas”, afirma a professora Rosana Teixeira. Ao atentar para o caso da população LGBTQIA+ nos estádios, a professora Lívia Magalhães ressalta o fato de o futebol ser considerado um espaço de exacerbação da masculinidade, muitas vezes violenta, o que contribui, por exemplo, para que muitos jogadores não assumam sua orientação sexual. “Porque sabem que é um espaço misógino, machista, e que sabem que eles vão sofrer diversos preconceitos”, completa ela.
A pesquisadora Fernanda Haag, porém, acredita que o ambiente do futebol pode se configurar um espaço anti-racista, feminista, que seja acolhedor com a população LGBTQIA+. “Ele [o futebol] é um espaço de disputa e que precisa ser ocupado, para que seja, efetivamente, um espaço para todos, para todas e para todes”, diz ela, que atenta para as diferenças encontradas no âmbito das próprias torcidas. “Algo central que a gente precisa lembrar é que as torcidas não são homogêneas, pelo contrário, há muitas diferenças internas, a gente está falando de milhões, milhares de pessoas, Dentro das próprias torcidas, vemos pessoas de diferentes classes, raças, gênero, faixa etária, ideologias, enfim, e é preciso que a gente considere essas clivagens em qualquer análise que a gente faça”, complementa ela.
FUTEBOL, POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Quando a seleção brasileira entra em campo na Copa do Mundo 2022, no Quatar, está em discussão também o papel do próprio time como imagem de uma nação. Para alguns pesquisadores, o campo de futebol também é um espaço de relações internacionais, como demonstra a própria história do esporte. A análise sob essa ótica nos ajuda a entender os significados das derrotas e das conquistas da seleção brasileira de futebol nas Copas do Mundo para o país. A derrota de 1950 e o tricampeonato alcançado em 1970, por exemplo, foram sentidos, respectivamente, como a derrota e a vitória de projetos de nação, escrevem o bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Ronaldo Helal, e a professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ, Leda Maria da Costa, em artigo publicado este ano na Revista Conexões, publicação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que divulga a produção científica em Educação Física e áreas correlatas. Segundo Helal e Leda da Costa, a seleção gerava sentimento de pessimismo e de ufanismo, estabelecendo a equação futebol-nação, que começou a diminuir a partir dos anos 1990. “As narrativas jornalísticas já não tratam o futebol como metonímia da nação. As conquistas de 1994 e de 2002 e a derrota na final de 1998, não transcenderam o universo esportivo. A derrota por 7 a 1 para a Alemanha em 2014 gerou memes, que evidenciavam que a identidade nacional não tinha sido afetada. Em 2018, a eliminação para a Bélgica gerou narrativas de ordem técnica”, escrevem eles.
“O futebol moderno, dos finais do século XIX e começo do XX, sempre foi um espaço de questões de relações internacionais. É muito comum se falar na Europa sobre isso”, diz a professora da UFF, Lívia Magalhães. Ela lembra que a própria criação da Federação Internacional de Futebol (FIFA), em 1904, em Paris, já trazia uma discussão sobre a geopolítica europeia. A FIFA foi criada na França, e não na Inglaterra, considerada o berço do futebol moderno e onde o futebol moderno foi regulamentado. À época, o esporte era praticado em outros locais, inclusive no Brasil, e já era um espaço de tensão e disputas. Lívia Magalhães revela que esse ambiente era evidente, no caso da América do Sul. “Existiam competições com nomes de importantes políticos da América do Sul, como, por exemplo, a Copa Julio Argentino Roca, que foi presidente da Argentina e, depois, Ministro das Relações Exteriores. Era simplesmente um jogo entre o Brasil e a Argentina, que acontecia ida e volta. Se tivesse empate, acontecia o terceiro jogo, que era um espaço de geopolítica também”, lembra a professora. “Isso não bate com uma ideia que se construiu posteriormente, principalmente, acredito eu, depois da segunda metade do século XX, de a ideia do futebol como espaço apolítico. O espaço futebolístico sempre foi político”, completa Lívia Magalhães.
De fato, as várias manifestações políticas tanto de jogadores, como de dirigentes ou de governos que se apropriaram do esporte, utilizando o futebol como forma de diplomacia, demonstram que o espaço do futebol não é neutro. A Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, já utilizou diversas vezes o futebol como uma prática de diplomacia, organizando jogos ou levando jogadores a determinados espaços, para a promoção da paz. Da mesma forma que nas relações internacionais, o esporte também serviu aos interesses de política interna de regimes de governo ao redor do mundo, em diversos momentos da história. A Copa de 1934, disputada na Itália sob o governo de Benito Mussolini e vencida pela seleção local, foi usada como momento de propaganda do regime italiano da época. Situação semelhante, e muito comparada à italiana, foi o caso da Copa do Mundo de 1978, realizada na Argentina. A seleção argentina foi sagrada campeã da competição e, sua vitória, associada ao êxito do então regime.
No Brasil, a utilização do futebol pelo governo Vargas e ainda durante os anos 1970 também tem sido evidenciada. Segundo Lívia Magalhães, Vargas pode ser considerado um presidente do futebol. “Ele percebe a importância do futebol para a construção de um projeto de nacionalidade”, afirma a professora. Coordenadora de projeto de pesquisa contemplado pela Chamada CNPq/MCTI/FNDCT Universal Nº 18/2021, proposta que estuda a memória e cidade por meio da construção de estádios de futebol no Rio de Janeiro Niterói e São Paulo, entre 1937 e 1950, e que envolve pesquisadores de diversas áreas do conhecimento – além da UFF, instituição de origem da professora, a UNICAMP e a Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) – Lívia Magalhães ressalta a participação do governo Vargas na construção dos estádios e, devido ao viés trabalhista do regime Vargas, a consequente celebração da data do Dia do Trabalho, o primeiro de maio, nos estádios de São Januário e do Pacaembu, em São Paulo. No Brasil, outro caso clássico foi o da vitória do Brasil, campeão da Copa do Mundo de 1970, realizada no México. O governo brasileiro da época também capitalizou a vitória, associando-a ao discurso de que ela seria também o triunfo do regime. “É importante destacar que a associação entre esporte e Estado ou determinado governo também acontece em momentos de democracia”, frisa Lívia Magalhães.
Todos esses pontos reforçam a perspectiva de que o futebol já superou há tempos a importância apenas como modalidade esportiva. São diversos os simbolismos que envolvem a temática e que têm sido estudados pela ciência para compreender o fenômeno no Brasil.
Fonte: CNPQ
Foto: Pelé e Jairzinho na Copa de 1970 – divulgação Fifa