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Dá para medir o impacto do racismo?

Neste mês de novembro, cientistas falam dos desafios metodológicos das observações populacionais que avaliam a Raça/Cor e o impacto na saúde. Leia artigo de Karina Costa/NCD, publicado no site do Cidacs/Fiocruz Bahia:

A chance de óbito materno no puerpério para as mulheres pretas por Covid-19 foi 62% maior quando comparados às mortes entre as mulheres brancas. Esse é o mais novo achado das pesquisas que analisam raça/cor e foi publicada na Revista de Saúde Coletiva de novembro. Antes disso, identificou-se que as crianças pretas estão mais vulneráveis à morte por doenças evitáveis e que as adolescentes negras são as maiores vítimas de poliviolências. Todos esses achados foram obtidos por meio de estudos robustos com análises estatísticas e métodos computacionais aliados à epidemiologia no Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia). 

Neste novembro, mês da Consciência Negra, destaca-se a inovação científica que é quantificar um problema considerado social e que levanta discursos anticientíficos. “Ainda é um desafio interpretar a raça/cor como uma variável proxy para analisarmos as desigualdades raciais e as manifestações do racismo”, comenta a pesquisadora associada ao Cidacs Emanuelle Góes, que se dedica a investigar as questões de gênero e raça no campo da saúde. Ela explica que o desafio surge do fato de que raça é uma construção social-cultural-política, mas para que seu impacto seja passível de análise, precisa se tornar uma variável analítica, um marcador social estrutural que reflita as desigualdades raciais construídas ao longo processo histórico. “Isso tudo é muito recente”, aponta Góes.  

“SOMOS TODOS HUMANOS” 

Os grupos populacionais estão imersos em contextos que pré-determinam as condições de vida. Mas nem todos vivem da mesma forma. Isso o campo da saúde coletiva já indica por meio de inúmeros estudos. Por isso se torna necessário medir as desigualdades. E como essas desigualdades são possíveis de serem vistas e quantificadas? Em suma, usa-se a comparação. Seleciona-se um grupo de referência em que um problema de saúde é mais ou menos grave, segundo a literatura científica. Para medir desigualdades, em geral, os grupos de pessoas brancas servem como grupo de controle.  

Para o mais recente estudo, por exemplo, na investigação intitulada Racismo antinegro e morte materna por COVID-19: o que vimos na Pandemia?, foi feito um estudo exploratório, de delineamento transversal, ou seja, ao longo do tempo, e observou-se 1,71 milhão de casos notificados de Covid-19 desde 1º de janeiro de 2021 a 21 de fevereiro de 2022. Os dados utilizados tiveram origem nos Bancos de Dados de Síndrome Respiratória Aguda Grave – incluindo dados da COVID-19 referentes à Vigilância de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) do Ministério da Saúde para os anos 2021 e 2022. Observando a taxa de morte de cada grupo comparável, ou seja, que possuam características semelhantes, como idade, taxa de escolaridade, acesso aos serviços de saúde, é possível então quantificar um problema social e ver qual grupo está mais vulnerável. 

Dandara Ramos, pesquisadora associada ao Cidacs e professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba), explica que o quesito raça-cor é utilizado como um proxy, ou seja, como instrumento que possibilita documentar as desigualdades raciais e, por consequência, os efeitos do racismo. Embora o tema do racismo seja muitas vezes investigado sob as abordagens históricas e sociológicas, Ramos argumenta o porquê investir nessa temática no campo da saúde. “Dentro da saúde coletiva, consideramos que a saúde é determinada por processos sociais. Nesse sentido, o racismo é considerado um determinante social das iniquidades em saúde e deve ser considerado como dimensão estrutural para todos os estudos sobre saúde populacional”. 

Ramos é uma das autoras de um estudo publicado no The Lancet Global Health sobre racismo e impacto na mortalidade infantil, em que se revela que os filhos de mulheres pretas estão mais suscetíveis em 72% a morrer por  diarreia, 78% de pneumonia e 2 vezes mais de má-nutrição. Ao lado de Emanuelle Goes, Ramos também esteve à frente do estudo Intersection of Race and Gender in Self-Reports of Violent Experiences and Polyvictimization by Young Girls in Brazil. O estudo utilizou dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense/2015), envolvendo 14.809 meninas entre 15 e 19 anos de todo o país, que frequentavam a escola naquele ano, e as meninas negras tiveram a maior prevalência de relatos de polivitimização , ou seja, vítima ao mesmo tempo de várias formas de violência(4,27%).   

IDS  

A construção de um indicador pressupõe o entrelace de diversos fatores para avaliar um problema. Entre as inovações científicas do Índice de Desigualdades para Covid-19 (IDS-COVID-19), está a variável Raça/Cor. No IDS, o marcador serve para avaliar como a pandemia impacta de formas diferentes os grupos populacionais, considerando também estes aspectos. O índice é a concretização de ambições científicas de quem sempre “bateu nessa tecla” e agora pode mostrar impacto das desigualdades raciais usando números. Neste caso, a proporcionalidade de pessoas autodeclaradas pretas que compõe a fatia da população analisada é o que chamamos de “variável Raça/Cor”. E é inovador porque usar esse fator nas medidas de desigualdades é validar que o racismo existe e impacta, e este impacto pode inclusive ser medido. 

A pandemia causada pelo vírus SARS-Cov– 2 impactou de maneira severa o país e aprofundou as desigualdades sociais pré-existentes.  A variável raça/cor surge em contexto de inovação no modo de fazer pesquisa,é fruto de uma trajetória de lutas e a inclusão desse fator legitima discursos sociais de quem tem trabalhado para combater as diversas formas de racismo.  Todo o IDS-Covid-19 já se revela inovador, quando se incorpora na sua produção o conceito de Engajamento Público da Ciência, em que diversos atores sociais, advindos da luta prática, dos estudos de antropologia, médicos, comunicólogos, epidemiologistas e muitos outros participam de forma horizontal na construção do índice. 

Esta abordagem rendeu um documentário, mostrando como se dá essa forma de fazer ciência – o material será lançado em outubro. Neste índice, além dos pesquisadores do Cidacs, gestores públicos da saúde, membros de Conselhos de Saúde, grupos de mulheres negras de organizações do Amapá, Bahia,  Maranhão,  Paraíba, Paraná e Rio de Janeiro também fizeram parte.  

Lúcia Gato, moradora de São Luís, Maranhão, líder do Grupo Mulheres Negras Mãe Andresa, participou da construção do IDS-Covid-19, como representante da sociedade civil organizada. Ela acredita que estudos em saúde feitos em países como o Brasil, com população negra presente, contribuem para que esses grupos excluídos sejam vistos, tanto para pessoas negras quanto para as indígenas. Para ela, essas desigualdades se explicam porque a população negra sofre da falta de acessibilidade nos serviços de saúde e possui condições de vida que contribuem para uma exposição maior aos riscos, seja pelos empregos que ocupam, ou pelo local onde vivem, sobretudo a mulher negra, na busca pelo autocuidado, que é limitado.  

A maranhense afirma que a própria política de imunização deveria pensar sobre essa questão racial, pois para receber a vacina não existe uma garantia legal ao trabalhador para faltar ao trabalho, por exemplo. Ficando sempre vulnerável a quem o emprega, principalmente a empregada doméstica. Para a líder, é preciso ter uma iniciativa que leve em consideração as condições em que vivem essas pessoas. “Principalmente as mulheres. Isso vai implicar em falta, atrasos, perda de dias de serviços”, lembra a líder.  

Embora mais evidente na pandemia, as desigualdades aparecem, como se mostra nas pesquisas, em doenças já consolidadas. Já a desnutrição e diarreia, por exemplo, para Lúcia está muito ligada aos “bolsões de pobreza”, onde falta saneamento, onde há insegurança alimentar e é justamente onde vivem as pessoas negras, “fincados nos moldes do racismo”. “Isso não acontece ao acaso, e essas situações são mediadas pelo racismo estrutural e institucional. E não existe política pública que vai dar resultados se não olhar para as bases históricas brasileiras, que consideram as condições das populações afro e indígenas, quilombolas, e da população LGBTQIA+”. 

 

Fonte: Por Karina Costa/NCD – Cidacs / Fiocruz Bahia

Foto: Imagem de Oma Wachman por Pixabay 

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