Peixes recém-descobertos na Bacia Amazônica já estão ameaçados de extinção
O estudo relata que as duas espécies encontradas pertencem a subfamília Crenuchinae – um grupo de peixes de água doce cujos representantes só ocorrem na Bacia Amazônica. “Até publicarmos este trabalho, só havia duas espécies conhecidas para esta subfamília, sendo que a última foi descrita em 1965. Ou seja, em quase 60 anos, este é o primeiro estudo de descrição de espécies do grupo”, observa Priscila Camelier, professora do Instituto de Biologia da UFBA.
Ela também conta que, até a publicação do trabalho, apenas duas espécies do gênero Poecilocharax eram conhecidas. Com a descoberta, esse número foi ampliado para quatro, com um importante destaque: “São as primeiras (e únicas até o momento) a serem registradas para afluentes da margem direita do Rio Amazonas, que drenam o Escudo Cristalino Brasileiro”.
O trabalho também se destaca pela combinação de uso de dados morfológicos – responsáveis por descrever, por exemplo, padrão de colorido, contagem de escamas e raios de nadadeiras, dados morfométricos – e dados moleculares – que reúnem informações do genoma. Daí que a descoberta das novas espécies também é acompanhada de outros achados. Com essas ferramentas, os pesquisadores viram que ambas as espécies apresentam dimorfismo sexual, ou seja, “machos e fêmeas possuem características físicas, além dos órgãos reprodutivos, que nos permitem diferenciá-los”, explica Camelier.
Outras características também ganharam destaque, a exemplo da percepção que o Poecilocharax callipterus tem machos mais alaranjados que as fêmeas, possuindo uma coloração mais escura, além de nadadeiras dorsais e anais mais alongadas. Já em Poecilocharax rhizophilus, os machos têm listras escuras nas nadadeiras dorsal e anal, que estão ausentes nas fêmeas.
“Além disso, o tamanho de Poecilocharax rhizophilus nos surpreendeu! Quando vimos a espécie, achamos que tínhamos coletado apenas indivíduos jovens, mas quando analisamos o material na lupa observamos que eles já tinham atingido maturidade sexual e se tratavam de adultos, que não chegam a 3 cm de comprimento nesta espécie. Podemos afirmar que Poecilocharax rhizophilus é uma espécie de peixe miniatura”, diz.
EXPEDIÇÃO CIENTÍFICA
O trabalho de campo que resultou na descoberta das novas espécies envolve uma série de desafios, desde os mais burocráticos como licenças para coletas e de logísticas, à falta de conforto e conexões com rede telefônica ou de internet, bastante comuns em expedições para bacia Amazônica – o que também ocorreu no estudo. Priscila Camelier relembra detalhes do trabalho científico:
“Os eventos de coleta que resultaram na descoberta das espécies que descrevemos só foram possíveis graças ao apoio financeiro de um importante projeto ao qual estávamos vinculados na época, o projeto South American Characiformes Inventory (SACI), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e coordenado pelo meu orientador de doutorado, Naércio Aquino Menezes, professor titular da USP. O objetivo principal deste projeto foi amostrar peixes de água doce ao longo da América do Sul, com foco na ordem Characiformes, que inclui as piabas, pacus, traíras, piranhas, piaus etc”. O ponto de partida da expedição, conta, foi o município de Porto Velho (RO).
“A equipe amostrou rios, lagoas e riachos ao longo da rodovia BR-230 (Transamazônica), entre os municípios de Lábrea (AM) até Jacareacanga (PA), cobrindo um trecho de cerca de 900 Km de rodovia não pavimentada. Essa região é bastante remota e os principais desafios durante os dias em campo foram os de acampar por boa parte do tempo (o acesso a hotéis e pousadas na região é extremamente limitado), garantir alimentação/bebida e combustível para durar os 15 dias em campo (postos de gasolina também são raros ao longo de boa parte da BR), e ter atenção redobrada para não se acidentar em campo, pois o acesso a hospitais também é muito limitado na região. Além das questões de logística mencionadas, também foram expedições nas quais as equipes tiveram de trabalhar com atenção redobrada para tomar notas de tudo o que estava sendo observado e coletado – anotar coordenadas geográficas, preencher cautelosamente as fichas de campo, fotografar os locais de coleta e os peixes amostrados, além de anotar dados gerais sobre o ambiente (turbidez da água, tipo de sedimento, profundidade aproximada dos corpos d’água amostrados)”.
“A GENTE SÓ PRESERVA AQUILO QUE CONHECE!”
“Trabalhos de descrição de espécies como este que publicamos são essenciais para o estudo da biodiversidade. A ciência que tem como objetivo conhecer, descrever e catalogar a biodiversidade é a taxonomia, área da biologia que muitas vezes não recebe o valor e atenção que merece (…). Desde a minha graduação em biologia, que fiz aqui na UFBA, eu ouço a frase ‘a gente só preserva aquilo que conhece!’ e, hoje, como estudiosa da biodiversidade e especialista em peixes, vejo o quanto ela é verdadeira e, cada vez mais, atual”, comenta Camelier.
A bióloga observa que, em razão da destruição e contaminação de rios e riachos, tornou-se cada vez mais comum a descoberta de novas espécies já ameaçadas de extinção. “Isso significa que a gente mal passa a conhecer a espécie e ela já é incluída em alguma categoria de ameaça, o que indica que ela pode desaparecer para sempre a qualquer momento. Isso sem falar das espécies que são extintas antes mesmo de serem conhecidas e pelas quais absolutamente nada pôde ser feito”, observa.
A pesquisadora destaca também que é preciso apoio da sociedade na luta pela preservação da biodiversidade. Ela lembra que, no Brasil, as políticas e ações de conservação são baseadas, principalmente, em lista de espécies ameaçadas de extinção. Assim, “o trabalho do taxonomista é essencial para conservação da biodiversidade. Eu penso nisso sempre e, como eu sou uma otimista de carteirinha, sigo fazendo meu trabalho de taxonomista e ajudando a formar pessoas que façam este tipo de trabalho com todo amor e dedicação que posso; aos trancos e barrancos, mas resistindo, sempre!”
Fonte: Fernanda Caldas – UFBA / Edgardigital
Foto: Murilo N.L. Pastana e Willian M. Ohara – Jornal USP