Cientistas exploram mundo desconhecido de insetos na copa de árvores da Amazônia
Estudo capturou e catalogou pela primeira vez milhares de espécies que vivem no topo das árvores da maior floresta tropical do planeta.
“É como se tivesse um outro continente acima das nossas cabeças”, diz ao Jornal da USP o entomólogo (especialista em insetos) Dalton de Souza Amorim, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Ele é o primeiro autor do trabalho que descreve os achados do experimento, publicado em 2 de fevereiro na revista Scientific Reports, em colaboração com diversos colegas do Brasil e do exterior. “Mais da metade da fauna de insetos está lá em cima, no topo das árvores”, resume ele, num misto de empolgação e admiração pelo que descobriu. “Acima de 32 metros é uma loucura; aquilo lá é uma avenida.”
Os pesquisadores sabiam que a biodiversidade de insetos do dossel (o ecossistema formado pelo conjunto de copas das árvores) seria diferente da encontrada no chão da floresta. Nenhuma surpresa aí. Vários estudos desse tipo já foram feitos no passado, em vários lugares do mundo, mirando grupos específicos de insetos ou coletando espécimes de forma mais genérica — por exemplo, por meio da fumigação de árvores, quando se aplica um inseticida a vapor para derrubar os insetos da copa e coletá-los no solo. “Mas isso nunca tinha sido analisado de forma tão estruturada e sistemática”, destaca Amorim.
Neste caso, as armadilhas, parecidas com uma barraca de tela transparente, com 6 metros (m) do comprimento cada uma, foram instaladas em cinco andares da torre de pesquisa, com 8 metros de distância vertical entre elas (0,8, 16, 24 e 32 metros acima do nível do solo). A torre, conhecida como ZF2, pertence ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e fica na Estação Experimental de Silvicultura Tropical, cerca de 60 quilômetros (km) ao norte de Manaus, numa região de floresta densa e bem conservada, onde a altura média da copa é de 28 metros — mas há árvores que chegam a 50 metros. (Veja a localização exata da torre pelo Google Maps, aqui.)
Essa configuração inédita permitiu aos cientistas não só fazer uma comparação entre o solo e a copa, mas estratificar as amostras de acordo com a altura em que cada inseto foi capturado dentro do dossel. “Começamos a ganhar uma compreensão melhor da estrutura vertical da biodiversidade da floresta”, comemora Amorim. Ficou claro que não só a fauna que circula pelo dossel é diferente da que vive próximo ao solo, mas cada “andar” da floresta tem as suas particularidades. Nem todos os insetos que circulam a 8 metros do chão chegam ao topo das árvores, e nem todos os que vivem a 32 metros de altura descem para o chão da floresta, por exemplo — “ilustrando a importância da copa como um conjunto de habitats distintos, com nichos variados para insetos”, escrevem os pesquisadores na Scientific Reports. A concepção do experimento foi do entomólogo José Albertino Rafael, do Inpa, que também assina o estudo.
Segundo Amorim, cerca de 23% das espécies coletadas no experimento eram exclusivas do solo — ou seja, não apareceram em nenhuma das amostras de copa —, enquanto que 60% estavam presentes apenas na copa. Somente 17% das espécies foram registradas tanto no solo (abaixo dos 8 metros) quanto no dossel (em alguma das camadas acima de 8 metros).
As coletas ocorreram ao longo de um período de duas semanas, em agosto de 2017. Separando em números arredondados, foram capturados 16.600 exemplares de dípteros (moscas e mosquitos), 7.300 exemplares de himenópteros (abelhas, vespas e formigas), 6.900 lepidópteros (borboletas e mariposas), 3.940 hemípteros (cigarras, cigarrinhas, percevejos, barbeiros e outros) e 2.670 coleópteros (besouros e joaninhas). E isso foi só o começo! Depois desse primeiro esforço de coleta, descrito no atual trabalho, Rafael e sua equipe em Manaus continuaram montando as armadilhas na torre por mais 13 meses, resultando numa coleção de aproximadamente 700 mil insetos, que ainda levará anos (provavelmente, décadas) para ser triada e analisada por completo.
A quantidade e a diversidade de insetos coletados somente nessas primeiras duas semanas já foram tão grandes que até hoje, passados mais de quatro anos desde o início do experimento, os cientistas ainda não conseguiram identificar todas as famílias representadas no material. Muito menos todas as espécies. (Lembrando que os seres vivos são classificados em reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies. Nós, seres humanos modernos, por exemplo, pertencemos ao reino Animalia, filo Chordata, classe Mammalia, ordem Primata, família Hominidae, gênero Homo, espécie Homo sapiens.)
O grupo que recebeu maior atenção foi o dos dípteros (ordem Diptera), especialidade de Amorim e Rafael. Amostras de moscas e mosquitos coletadas na torre foram compartilhadas com diversos especialistas, resultando na identificação de 856 espécies — ou “morfoespécies”, mais especificamente, que é quando um organismo é classificado com base somente em suas características morfológicas, e não genéticas. A maioria foi identificada até o nível de gênero, e é provável que representem novas espécies para a ciência. Algumas são prováveis novos gêneros, e há ainda as que nem tiveram suas famílias identificadas, por falta de especialistas. Ou seja, ainda há muito trabalho pela frente.
Descrever esses pequenos insetos, representados por centenas ou até milhares de espécies, é “o nosso maior desafio de conhecimento da biodiversidade”, diz Amorim. O próximo grande projeto que ele quer colocar em prática envolve o uso de uma técnica conhecida como barcoding de DNA, que permite identificar espécies rapidamente e com grande acurácia, por meio de suas informações genéticas — o que seria extremamente útil para a análise de grandes volumes de material biológico, como este coletado na torre.
IMPORTÂNCIA
Mas por que tanto esforço para identificar moscas e mosquitos? A maioria das pessoas, se fosse dada a escolha, provavelmente preferiria se livrar delas e de todos os outros insetos da natureza — com exceção, talvez, das borboletas. Mas muito cuidado com o que se deseja, pois, sem esses pequenos invertebrados para realizar uma enormidade de serviços ecológicos importantíssimos (como a polinização de flores e a decomposição de matéria orgânica), a floresta como a conhecemos simplesmente não existiria. “Sem os insetos, o sistema colapsa”, resume Amorim. Toda espécie tem sua função no ecossistema, e os insetos são, de longe, o grupo mais numeroso e mais diverso de fauna do planeta.
Nesse sentido, conhecer e proteger a biodiversidade de moscas, formigas e besouros da Amazônia é tão importante para o futuro da floresta quanto estudar e preservar suas onças e araras. Os resultados do estudo, segundo os autores, são um alerta de que a quantidade de diversidade biológica que se perde com o desmatamento — ou mesmo com a extração seletiva de grandes árvores, essenciais para a estrutura do dossel — é maior ainda do que se imaginava.
“Considerando a enorme pressão sobre a floresta primária amazônica nos últimos anos, em alguns casos realizada até com apoio governamental, o entendimento de sua biodiversidade torna-se uma prioridade mais urgente. Isso não pode ser alcançado em um ‘vácuo de dados’. Este trabalho preenche parte dessa lacuna, demonstrando uma rica e exclusiva fauna do dossel e um complexo sistema de padrões verticais de diferentes grupos de insetos na floresta amazônica”, escrevem os pesquisadores, na conclusão do trabalho. E finalizam com um apelo: “Ações concertadas devem ser feitas para proteger os ecossistemas tropicais – incluindo todos os níveis de dossel – contra estressores generalizados, como mudanças climáticas, desmatamento, fragmentação da paisagem e uso de pesticidas.”
Mais informações: (16) 3315-3706, e-mail dsamorim@usp.br, com o professor Dalton de Souza Amorim
Fonte: Jornal da USP