Precisamos de uma revolução na educação
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Cortes na área e a interrupção abrupta de programas de internacionalização são alguns dos pontos que atrapalham o avanço do país, de acordo com a biomédica Helena Nader. Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela foi eleita na terça (29) presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) — é a primeira mulher a ocupar o cargo nos 106 anos da instituição.
Como presidente, Nader afirma que quer reconstruir a educação brasileira, desde o ensino pré-escolar até o superior. “Precisamos de uma revolução na educação que começa na pré-escola e vai atéa pós-graduação. É preciso recuperar o pensar crítico e incentivar as crianças a pensarem desde uma idade muito jovem”, avalia a cientista. Além disso, a atual fuga de cérebros de pesquisadores brasileiros, processo em que pessoas altamente qualificadas com pós-graduação buscam oportunidades no exterior, preocupa por também ter matizes internas. “Não é só a fuga para o exterior que me preocupa, mas dentro do próprio país vejo muitos jovens recém-formados que deixam de buscar a pós-graduação, estão perdidos”, diz.
A biomédica conversou com a Folha em seu laboratório no Instituto de Farmacologia e Biologia Molecular da Unifesp, em São Paulo, sobre quais os desafios que espera da presidência da ABC, os obstáculos impostos às mulheres pesquisadoras e quais perspectivas aguarda para a ciência e educação brasileiras em um ano de eleições presidenciais.
Folha de S.Paulo: A senhora acaba de ser eleita a primeira mulher a presidir a ABC, com 398 votos a favor (de um total de 420 votos, com 22 abstenções). Qual impacto trará para a entidade?
Helena B. Nader: Espero trazer impactos para a sociedade como um todo, em especial para as meninas mais novas, para que elas entendam que não há limites para ser quem você quer. Vivemos no Brasil um enorme retrocesso nos direitos das mulheres, o atual presidente não leva em consideração os nossos direitos, as vitórias que foram conquistadas pelas mulheres, com declarações tanto dele quanto da ministra Damares [Alves, da Cidadania, Mulher e Direitos Humanos] bastante nocivas. Ser a primeira mulher presidente de uma instituição centenária não significa uma mudança propriamente, mas um reconhecimento para a sociedade de como chegamos lá. Sou mulher, mãe, avó, orientadora, viúva, e vou continuar lutando pelos direitos das mulheres, que inclui tudo, não é só direito à educação.
Qual o seu principal desafio na presidência da ABC?
Na academia, o principal desafio é a reconstrução da educação básica. Nós da ABC produzimos conteúdo e publicamos na forma de livros ou materiais para depois embasar políticas públicas. A ciência é a base, mas o principal é a educação. E a ciência na educação serve para gerar espírito crítico nas crianças, fazê-las pensar, questionar.
Precisamos de uma revolução na educação que começa na pré-escola e vai até a pós-graduação. É preciso recuperar o pensar crítico e incentivar as crianças a questionarem desde uma idade muito jovem.
Como enxerga o impacto na educação do atual governo e o que diz sobre a queda do Ministro da Educação, Milton Ribeiro?
A educação brasileira caminha a passos largos para trás. O Estado brasileiro é laico. É preciso garantir a laicidade como prevista na Constituição brasileira. Para quem não gosta disso, mude a Constituição, mas por enquanto, precisamos agir de acordo.
Qual o papel das entidades científicas na diversidade?
É uma preocupação nossa, e em todas as esferas. O assédio sexual e também o moral, que é tão grave quanto, estão na nossa mente. Estamos trabalhando com um grupo liderado pela professora Márcia Barbosa [física da UFRGS] que escreveu um código de ética que será incluído no estatuto da ABC. Esse estatuto terá, inclusive, ações de como lidar com a desinformação científica. Em relação à diversidade, no último ano os novos membros que entraram da ABC já foram mais diversos, a maioria que entrou foram mulheres e pessoas brancas. Precisamos contar com essas pessoas porque isso é essencial para aumentar o conhecimento e também dos povos tradicionais, os indígenas, quilombolas, todos.
Nos três anos do governo Bolsonaro, quais os impactos que a colaboração científica internacional sofreu no país?
Em primeiro lugar, o programa Ciência sem Fronteiras foi um projeto audacioso com impactos muito positivos. É claro que teve erros, mas o impacto na internacionalização da ciência brasileira foi muito grande, e várias colaborações permaneceram dessas idas. O problema é que no Brasil não existe fluxo contínuo, e ele foi abruptamente cortado. Ciência e educação precisam ser políticas de Estado, e não de governo. Não pode ser construída a educação com cor político-partidária, quando isso ocorre é um desastre. Agora durante o governo Bolsonaro houve a continuidade de um programa de internacionalização de universidades excelente que é o Print, então não posso dizer que é tudo ruim. É claro que a pandemia atrapalhou principalmente por conta da mobilidade, mas é um caminho a se seguir.
Como enxerga os cortes de cerca de 92% no orçamento da ciência realizados no ano passado?
Não foi por falta de comunicação com o Ministério da Economia. É muito triste, me revolta até, porque na hora de fazerem discurso a favor da ciência fazem, mas não praticam. Os cortes são violentos e causam efeitos no futuro. Durante a pandemia da Covid-19, o Fundo Monetário Internacional disse que é preciso investir em ciência, só assim iríamos conseguir sair da pandemia. Pensamos que se o FMI diz isso, alguém vai ouvir, mas nada mudou, infelizmente.
O que pensa sobre o investimento privado em ciência?
Acho que a parceria público-privada é fundamental, e precisamos buscar isso através de leis que já existem no Brasil. Muitas empresas acabam desistindo de investir em ciência no Brasil porque há uma má compreensão da lei. Por exemplo, a Embrapa é uma das maiores empresas do Brasil, e ela foi criada no período da ditadura. E eu não defendo os ditadores, eu lutei muito contra os militares na época, mas eles tiveram uma sacada que foi enviar os engenheiros agrônomos para fora do país, fazer doutorado, se especializar e voltar para cá e aplicar. Hoje somos o país número um em produção de soja. Isso deveria servir também para outras áreas, como a da saúde. O Brasil está muito atrasado nisso.
Hoje temos um caminho reverso, de pesquisadores que saem e não voltam?
A fuga de cérebros para o exterior é patente, mas vou ser sincera, o que me preocupa não é só a fuga para o exterior, mas dentro do próprio país vejo muitos jovens recém-formados que deixam de buscar a pós-graduação, estão perdidos. Os estudantes estão entrando menos na universidade e os que saem estão procurando menos a pós-graduação. Isso é um retrocesso muito grande.Costumo dar um exemplo que é a construção de uma estrada, se ela for paralisada por falta de verba, ninguém gosta de parar uma obra, você pode até ter dificuldades mais para frente, mas retoma. Educação e ciência não recupera. Aquele aluno que você deixou de formar não forma mais. Por isso que meu objetivo principal e pelo qual vou lutar é por reajuste das bolsas de pós-graduação.
RAIO-X
Nascida na cidade de São Paulo, é bacharel em Ciências Biomédicas pela Unifesp e licenciada em Ciências Biológicas pela USP. Fez doutorado em Ciências Biomédicas também na Unifesp, onde é professora desde 1989. Possui pós-doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade do Sul da Califórnia(EUA). Foi pró-reitora de Graduação da Unifesp de 1999 a 2003, de Pós-Graduação e Pesquisa de 2007 a 2008 e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de 2011 a 2017.
Fonte: Academia Brasileira de Ciências
Foto: Academia Brasileira de Ciências